A doença inflamatória intestinal é um assunto de atualidade crescente, atendendo ao aumento de diagnósticos estabelecidos. Este grupo de doenças, constitui um tema importante, não só pelas implicações na qualidade de vida dos seus portadores, mas particularmente e apesar de terem características comuns, com implicação no tratamento e nos resultados a longo prazo, bem diferentes.
Os dois tipos mais frequentes, que importa aqui falar, são a Colite Ulcerosa e a doença de Crohn e dentro desta, pela sua especificidade, a doença de Crohn perianal.
Independentemente das considerações sobre cada uma das entidades, o mais importante a reter, é que estas doenças apresentam uma evolução imprevisível e por surtos, justificando uma vigilância e acompanhamento multidisciplinar. Neste sentido, a indicação para cirurgia e o momento da sua realização, continua a ser o ponto crucial para obter os melhores resultados, sendo, portanto, fundamental uma estreita interação entre gastrenterologistas e cirurgiões.
Qual o papel da cirurgia e quais as opções nestas doenças?
COLITE ULCEROSA
De forma resumida, podemos dizer que a colite ulcerosa é uma doença inflamatória crónica que atinge o revestimento interior do reto e do cólon (mucosa), podendo apresentar vários graus de gravidade e de extensão das lesões, de forma contínua e ascendente. A sua origem permanece desconhecida, mas provavelmente resultará da conjugação de vários fatores (bacterianos, ambientais, imunológicos e genéticos). A manifestação clínica é muito variável, desde formas muito ligeiras e praticamente sem sintomas, passando por formas crónicas debilitantes, resistentes ao tratamento médico, com eventuais complicações graves, para além do potencial desenvolvimento de cancro colo-retal.
Sem uma terapêutica médica curativa, podemos afirmar que cerca de 20-25% dos doentes com colite ulcerosa, ao longo da sua vida, são submetidos a algum tipo de cirurgia. Por outro lado e ao contrário da doença de Crohn, a cirurgia, apesar de associada a complicações de gravidade variável, nomeadamente nos doentes operados de urgência, pode ser potencialmente curativa.
Assim, podemos dividir a cirurgia em dois grandes grupos. Aquela que é realizada no contexto de urgência, quando a vida do doente está em risco, como no caso de uma hemorragia incontrolável, perfuração do intestino, dilatação cólica exuberante e na forma de colite aguda severa, sem resposta ao tratamento médico. Nestas situações, está indicada uma resseção de todo o intestino grosso (colectomia total), completada com a confeção de uma ileostomia (derivação das fezes para um saco coletor, através da abertura do intestino delgado suturado à pele).
Posteriormente, após a recuperação desta cirurgia, habitualmente entre os 3-6 meses na maioria dos doentes, é possível restabelecer a continuidade do trânsito intestinal.
A cirurgia eletiva ou programada, indicada nos casos de falência da terapêutica médica, na presença de displasia ou cancro, e ainda na criança, quando presente atraso de crescimento, passa pela resseção de todo o intestino grosso e reto, regra geral seguido da união do intestino delgado à região ano-retal, com a construção de uma bolsa em “J”, a mais usada, (intenção de reconstrução de um “novo reto”), como se vê nas figuras (a protocolectomia total reconstrutiva). Em alguns casos, menos frequentes, ligados com a doença ou com as condições do doente, a ligação não pode ser realizada, procedendo-se a uma ileostomia definitiva.
Outras intervenções cirúrgicas podem ser realizadas, mas constituem uma verdadeira exceção, sendo as mencionadas as mais usadas.
A abordagem por via laparoscópica (pequenas incisões através das quais se introduzem instrumentos e uma câmara), permitindo realizar os mesmos procedimentos cirúrgicos descritos, deve ser sempre que possível, opção nas cirurgias eletivas, por ser igualmente segura, proporcionar uma recuperação mais rápida, com menor tempo de internamento e uma menor taxa de complicações.
No âmbito da colite ulcerosa, fala-se muitas vezes no termo “pouchitis”, palavra que significa inflamação da bolsa que foi construída com o intestino delgado. O tratamento desta entidade é igualmente médico, contudo a cirurgia numa percentagem que ronda os 15%, pode ser chamada a colaborar no seu tratamento, quer pela realização de ileostomias provisórias ou definitivas, ou em casos muito selecionados, pela reconstrução de uma nova bolsa.
DOENÇA DE CROHN
A doença de Crohn, é igualmente uma doença inflamatória crónica do intestino, mas ao contrário da colite ulcerosa, ela afeta todas as camadas da parede intestinal (doença transmural), com áreas doentes intercaladas com áreas normais (doença segmentar).
Por outro lado, apesar de ser mais frequente o envolvimento do intestino delgado, do intestino grosso ou de ambos, pode surgir em qualquer segmento do trato digestivo, poupando, regra geral, o reto.
Não se conhece a causa da doença de Crohn, acredita-se que uma disfunção do sistema imunológico faça com que o intestino reaja de forma inadequada a um agente ambiental, alimentar ou infecioso. O tabagismo parece ter uma influência negativa, tanto na ocorrência periódica de exacerbações, como para uma recorrência mais precoce após a cirurgia.
Não existe cura para a doença de Crohn e ao contrário da colite ulcerosa, a cirurgia não é potencialmente curativa. Contudo, sabemos que perto de 70% destes doentes, ao longo da evolução da sua doença, serão submetidos a algum tipo de intervenção cirúrgica e em 33-75% a mais de uma cirurgia, dependente do tipo e da localização da doença.
Os objetivos da cirurgia na doença de Crohn, passam pela resolução das complicações decorrentes da evolução da doença e quando os sintomas se tornam refratários à terapêutica médica, contribuindo para a estabilização da doença, restabelecimento e manutenção de um bom estado nutricional e talvez o mais importante, para a melhoria da qualidade de vida. Este fato é para os doentes de grande relevo, podendo o período de melhoria dos sintomas e de uma vida ativa ser significativo, mas é de salientar que não sendo a cirurgia curativa, são fundamentais uma vigilância apertada e uma terapêutica de manutenção ajustada, de forma a retardar o mais possível a recorrência da doença.
A cirurgia de urgência, particularmente no contexto da doença de Crohn, está sempre associada a piores resultados, terminando na maior parte das vezes na realização de ostomias (ligação do intestino à pele, para passagem das fezes), sendo a cirurgia programada, após a melhoria das condições gerais do doente, a que se associa aos melhores resultados clínicos e funcionais.
Neste contexto, a cirurgia pode abordar a doença de Crohn de duas formas, ou pela realização de estrituroplastias, (na presença da diminuição progressiva do calibre do intestino pelo processo inflamatório, impedindo a normal progressão do seu conteúdo - estenose), corrigindo a estenose, sem sacrificar intestino, com indicações limitadas, ou através de uma resseção mais ou menos alargada do intestino doente, com ligação dos dois topos -a maisfrequentemente indicada. A associação de ambas, no intuito de preservar intestino, poderá ser uma alternativa válida.
Também aqui, a abordagem por laparoscopia, tem ganho o seu espaço e, apesar de exigir maior experiência, reúne vantagens inquestionáveis, nomeadamente pela menor formação de aderências, que na doença de Crohn têm uma importância decisiva, dado o risco de eventuais cirurgias no futuro.
A mensagem final talvez mais importante, no tratamento e seguimento dos doentes com doença de Crohn, consiste na impossibilidade de estabelecer regras, para uma doença de comportamento tão diferente, cada caso é um caso, implicando sempre o envolvimento do gastrenterologista, do cirurgião e principalmente do doente.
DOENÇA DE CROHN PERIANAL
A manifestação perianal da doença de Crohn, ocorre entre os 17-43%, sendo o seu tratamento um verdadeiro desafio para gastrenterologistas e cirurgiões, pelos seus elevados índices de recidiva.
As principais formas de manifestação da doença, é a presença de fístulas (trajeto entre a pele e o interior do canal anal), presentes em cerca de 20% dos casos, ou de abcessos, geralmente secundários à presença das primeiras. A sua associação à doença de Crohn, implica uma estratégia terapêutica altamente especializada.
Sendo que a abordagem terapêutica deve ser sempre médica, o papel da cirurgia pode dividir-se em duas fases:
Fase aguda: apesar do caráter urgente, o procedimento mais eficaz, nesta fase da doença, passa pela simples drenagem e colocação de um dreno (como se mostra na figura), permitindo um melhor controlo da infeção e o posterior início de medicação específica, permitindo mais tarde a sua remoção.
Fase crónica: quando a fístula se mantém ativa, ou seja, acompanhada de dor ou desconforto perianal, prurido e com episódios de drenagem, apesar da terapêutica dirigida. O objetivo da cirurgia nesta fase, em conjunto com a terapêutica médica, é o recurso a procedimentos que conduzam à cicatrização destes trajetos, tendo sempre a preocupação de manter a continência fecal, prevenir a recidiva, evitar as ostomias e finalmente melhorar a qualidade de vida.
Das múltiplas opções cirúrgicas para o tratamento das fístulas perianais, nem todas têm indicação, quando a doença de Crohn está presente.
Assim, a melhor opção vai depender de múltiplos fatores, como da idade, do sexo, da presença de doença ativa ao nível do reto e da sua extensão, da gravidade dos sintomas e da função dos esfíncteres no controlo das fezes. Isto significa, que o que pode parecer aos menos familiarizados com esta entidade, uma complicação menor da doença de Crohn, constitui uma situação de extrema complexidade.
Só uma escolha criteriosa pode conduzir aos melhores resultados.
Autoria Comissão de Cirurgia: Carlos Casimiro, António Manso, Fernando Valério, Marisa Santos, Miguel Campos
Para mais informações, aceda às páginas das associações portuguesa e europeia dos portadores de Doença Inflamatória Intestinal: